Os dois lados da Revolução Farroupilha
segunda-feira, setembro 20, 2021
Você sabia que há duas vertentes que tentam explicar os fatos ocorridos na famosa Guerra Farrapa? A tradicionalista e a histórica.
Ao nos referirmos aos fatos do período de 1835 a 1845, década
tão importante para o Rio Grande do Sul, sabemos que muitos acontecimentos
ainda estão sendo estudados, analisados e investigados à luz da história. A
Revolução Farroupilha é estudada hoje sob duas vertentes, ambas com o propósito
de esclarecer atos e fatos desta Guerra. Os tradicionalistas, que a denominam
“decênio heroico,” procuram enaltecer a participação de homens valentes,
bravos, que passaram a determinar os valores e a raça gaúcha. Esta corrente,
nascida a partir de 1947, com tradicionalistas como Paixão Cortes e Barboza
Lessa, tem se espalhado pelo território nacional e também pelo exterior,
através de inúmeros CTGs (Centro de Tradições Gaúchas) sob a coordenação do MTG
(Movimento de Tradições Gaúchas, buscando valorizar cada vez mais o folclore e
a tradição do nosso Estado.
Por outro lado, temos uma grande e profunda investigação
histórica: uma intensa pesquisa em documentos, registros de época, de
importante significado para que realmente se esclareçam atitudes e decisões
tomadas durante este conflito.
A História não visa depreciar os feitos heroicos nem suas
comemorações, mas explicar que nem toda celebração reside em fato consumado,
provado e heroico. A diversidade de opiniões é que faz a beleza da história.
Sendo assim, vamos abordar alguns aspectos da Revolução mais importante para os
destinos do povo gaúcho, mas apenas sob o ponto de vista histórico, pois a
variante tradicionalista já está bem esclarecida. Vamos então aos fatos como a
história nos ensina.
A Guerra dos Farrapos, também chamada Revolução Farroupilha,
foi a mais longa guerra civil brasileira. Durou 10 anos. Foi liderada por
fazendeiros de gado, que usaram as camadas pobres da população como massa de
apoio durante a luta. Os fazendeiros, unidos, jamais permitiram que as camadas
populares assumissem a liderança do movimento ou se organizassem em lutas
próprias. A História, embora esteja sendo reescrita atualmente, como já falamos
muitas vezes em nossos comentários, traz em seu conteúdo muitas marcas e
características, porque, em última análise, a História reflete a forma de
pensar e agir dos sujeitos que a produziram e que a registraram.
No caso da Revolução Farroupilha, o que temos é uma história
masculina, uma história de guerreiros ricos ou pobres, brancos ou negros.
Muitos fatos deste período e deste tema ainda não foram
suficientemente trabalhados. Entre eles o das mulheres – estas sim heroínas -
que tomadas enquanto grupo, desaparecem embora algumas, cuja ação se
sobressaia, são muito citadas. É o caso de Anita Garibaldi.
Para o historiador da Universidade Federal de Passo Fundo
(UPF), Tau Golin, o tradicionalismo passa uma falsa ideia de que, no século 19,
a população rio-grandense se levantou contra o Império. Para o pesquisador, o
que começou em 1835 foi um movimento contra a taxação da terra e do charque,
liderado por estancieiros e charqueadores.
Os ideais dos farroupilhas não foram além da luta pela
igualdade de direitos entre representantes do Império e os representantes das
classes dominantes gaúchas, principalmente latifundiários e profissionais
liberais. Não foi uma luta para a melhoria das relações sociais ou, mesmo, uma
luta de classes onde o povo teria reivindicado uma reestruturação da sociedade.
Ao contrário. O povo foi enganado com ideias vagas de liberdade. Mas os
verdadeiros direitos que os chefes farroupilhas buscavam eram os seus direitos
políticos. Então, a Revolução Farroupilha é uma das revoltas por liberdade no
Brasil da época do Império que passou a ser história no século XIX.
Muitos dos livros tradicionais dizem que o acontecimento
começou em protesto aos impostos altos que eram cobrados no charque, sal e
outros produtos da região Sul e era seu objetivo alcançar independência
política e econômica em relação ao governo central. Essa revolução é
considerada como uma guerra civil a qual colocou os rio-grandenses uns contra
os outros. Uma guerra iniciada pelos grandes donos de áreas rurais, conhecidos
como estancieiros. O império, que já tinha muitos impostos das propriedades
urbanas, queria taxar também as propriedades da zona rural.
No decorrer da revolução e para atrair adeptos e tornar
simpática a sua causa, os farroupilhas lançaram os ideais de Liberdade,
Igualdade e Humanidade. Palavras que, na prática, eram nulas, porque aquela era
uma sociedade opressora e escravocrata. Percebendo isso, os revolucionários
prometeram a libertação dos escravos e maior igualdade social.
Para que isso se concretizasse e adotasse ares de verdade, e
também para fortalecer as forças farroupilhas, foram criados os corpos de
Lanceiros Negros. Foram dois corpos de lanceiros constituídos, basicamente, de
negros livres ou de libertos pela República Rio-Grandense que lutaram na
Revolução Farroupilha. Possuíam 8 companhias de 51 homens cada, totalizando 426
lanceiros. Os Corpos de Lanceiros Negros eram integrados por negros livres ou
libertados pela Revolução com a condição de lutarem como soldados pela causa.
Eram recrutados, principalmente, entre os negros campeiros, domadores e
tropeiros das charqueadas, e, apesar de lhes ser prometida a liberdade em caso
de vitória da revolução, formavam corpos de combatentes separados dos brancos.
A sua única e verdadeira liberdade era a de lutar pela causa dos brancos.
Os Lanceiros Negros foram os responsáveis pelas principais
vitórias dos farroupilhas, como a de 11 de setembro de 1936 e a da vitória de
Laguna, em 1939. E o famoso e tão discutido Massacre de Porongos?
Antes de iniciar a
rebelião armada contra o império, os chefes farroupilhas prometeram aos
estancieiros e charqueadores que não usariam escravos como combatentes para não
tirar a mão-de-obra das fazendas, o que prejudicaria seus negócios e lucros.
Porém, logo que começaram as primeiras batalhas, os farrapos sentiram que
possuíam um contingente despreparado e pequeno para vencer os imperiais, o que os
levou em 1837 a formar o 1° Corpo de Lanceiros Negros, comandados por um
branco, Teixeira Nunes, o Gavião. Os farroupilhas prometiam dar liberdade aos
escravos que batalhassem a seu favor.
Ao final de 1844, já há 9 anos em conflito, a província
desgastada, a guerra parecia perdida. As tratativas para a assinatura de um
acordo de paz estavam em andamento, quando surgiu um grande problema: o Império
não aceitava a libertação dos negros. Então, como o RS poderia libertar seus
negros após a guerra como havia a promessa? E como ficariam os escravos do
resto do Brasil frente a esta atitude particular do sul do país? Algo tinha que
ser feito nesse sentido para que a paz pudesse ser assinada. A questão dos
escravos era o único ponto que ainda barrava a assinatura da paz entre os
grandes donos de terras que articularam a Revolução Farroupilha e as forças do
governo.
Com o objetivo de dar um fim ao conflito, David Canabarro
teria mandado, na madrugada de 14 de novembro, tirar todas as armas dos
escravos deixando apenas as lanças e espadas. Se os Lanceiros Negros fossem
mantidos vivos seriam um perigo. Assim, por volta das 2 horas da manhã, as
tropas imperiais de Abreu, conhecido como Moringue, entraram nos campos de
Porongos, hoje município de Pinheiro Machado. O Corpo de Lanceiros Negros,
desarmado, desprotegido, numa emboscada foi dizimado. Era a Surpresa de
Porongos, que há décadas vem sendo discutida pelo movimento negro e agora passa
a ser reescrita. Numerosos Lanceiros foram mortos, fala-se de 600 a 700. Em consequência,
mais de 300 farrapos, além de 35 oficiais foram presos. Vinte negros
sobreviveram e foram mandados para o Rio de Janeiro, onde voltaram a ser
escravos. Na verdade, uma das preocupações dos dois lados, revolucionários e
imperiais, era o que fazer com os negros após o fim do conflito. A história
oficial sempre negou a traição. No entanto, é fato conhecido no Rio Grande as
dúvidas de chefes farroupilhas sobre aquilo que foi chamado de "Surpresa
de Porongos".
O Massacre de Porongos foi um sangrento e covarde episódio da
Revolta Farroupilha que agora passa a ser discutido pela história oficial. Os
dias 13 e 14 de novembro marcam a data de homenagem aos Lanceiros Negros, tropa
dizimada pelo exército do imperador Pedro II no chamado Massacre de Porongos. A
chacina foi resultado de um traiçoeiro acordo entre um chefe dos farrapos e o
comandante do exército imperial, Caxias. Passados tantos anos da traição do
general David Canabarro (um dos líderes farrapos) e do comandante Duque de
Caxias, que vitimou tantos negros farroupilhas, a história muda o curso e traz
à tona a relevância dos Lanceiros Negros.
A divulgação do fato,
pouco conhecido pela população brasileira, vem questionar a figura de
Canabarro, sempre apresentado como um dos heróis da Revolta pelos historiadores
oficiais. A Revolta Farroupilha não foi uma guerra popular e sim um conflito de
facções da classe dominante. Fazendeiros gaúchos versus governo imperial.
Em seu decorrer, a
luta acabou arrastando camadas do povo, explorado e insatisfeito, o que deu um
caráter popular à Revolta. Segundo historiadores, “Paz de Ponche Verde” foi uma
paz confortável. Ninguém foi punido. Os chefes farroupilhas receberam
indenizações do governo. Muitos compraram terras com as indenizações.
Os oficiais republicanos passaram a pertencer ao exército
imperial, com o mesmo posto alcançado na revolução. As dívidas de guerra foram
pagas pelo Império. Os revolucionários gaúchos puderam, finalmente, indicar o
Presidente da Província ao seu gosto. Foi a chamada Paz Honrosa.
Independentemente dos fatos, o legado ficou: o amor pelo Rio Grande, que se fortificou e hoje nos torna diferentes do resto do mundo, pois mesmo que a história mostre que o verdadeiro objetivo da revolta sulina tenha sido defender os interesses dos mais abastados. Não podemos negar que ela uniu homens de todas as classes em prol de um ideal, mesmo que esse ideal tivesse sido diferente para cada um que nela lutou.
Este texto foi
aprestado no programa Espaço Cultural (Rádio Esmeralda), no dia 18 de setembro
de 2021, pela professora e historiadora vacariense Arlene Medeiros de Abreu.
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