Conto de Guerra
quarta-feira, novembro 22, 2017
É
inimaginável pensar na cultura gaúcha sem reafirmar nosso orgulho e sentimento
por nascer, crescer e ou viver as tradições dessa terra amada. Mais difícil
ainda é deixar de, em algum momento, associar esse sentimento aos ideais de
Revolução Farroupilha, posterior Guerra dos Farrapos.
Muitas
estórias, causos, livros, poesias e trovas surgiram, para contar com diferentes
palavras esse grande capítulo de nossa História. Um desses textos é o “Conto de
Guerra”, que é uma estória criada por João Paulo Maciel de Abreu para um
concurso de contos do ano de 2010, reproduzido logo a seguir:
Imagem: Roque Oliveira/Panoramio |
“Dona
Luísa e seu neto, João, tomam café da tarde na casa da fazenda que pertence à família
há mais de cem anos, herdada de seu o avô, Alfredo, um dos primeiros a receber
uma sesmaria no Rio Grande e de seu pai, Carlos Alberto, que continuou o legado
do trabalho na terra até o último de seus dias. João sempre teve curiosidade de
saber o porquê de toda a história de Alfredo e Carlos Alberto estar estampada
nas paredes do casarão, e não haver ali nenhuma foto ou retrato do marido de Dona
Luísa.
-
Por que não há nenhuma lembrança de meu avô nesta casa? E meu pai, por que
nunca comenta comigo sobre ele?
-
Ele nunca quis falar contigo sobre o assunto para que não dissesse
equivocadamente.
-
Como assim?
-
Teu pai nunca conheceu o teu avô.
-
Vovó, o que aconteceu para que eles não se conhecessem?
-
Acho que está na hora de você conhecer a história da nossa família. Teu Avô se
chamava Paulo Ferreira de Abreu, um homem que defendia firmemente suas ideias.
Ele era filho de um fazendeiro vizinho. Casamos quando eu tinha dezessete anos,
no dia 23 de junho de 1835.
-
Puxa vovó, que memória hein!
Terminam
a refeição e caminham em direção ao alpendre em frente ao casarão, onde
prosseguem a conversa e aproveitam a brisa. Luísa prossegue:
-
Na época, todos nós vivíamos da produção de charque. Teu avô, assim como muitos
outros gaúchos, estava descontente com o alto preço dos impostos cobrados. E o
pior, os nossos clientes passaram a comprar charque importado da Argentina.
Recém-casados, nós não podíamos continuar nossos negócios nestas condições.
-
Vó Luísa, ainda não respondeu por que papai não conheceu vovô?
-
Espera um pouquinho só, gurizinho apressado!
-
Pouco depois de casarmos, teu avô juntou-se a uns homens iguais a ele, e deram
início a uma revolução. Eu sei que um deles se chamava Bento e outro David José
Canabarro. Esse Bento era um militar, filho de estancieiro; e esse David nasceu
na cidade de Taquari. Esses dois eram muito amigos dele.
-
Quando começou essa revolução?
-
Começou em setembro de 1835. Poucos dias após o início da revolução, descobri
que estava grávida. Desde então passei a rezar todos os dias para que meu
marido voltasse bem. Teu avô não rezava muito, só fomos à igreja para casar.
-
Foi muito difícil cuidar da fazenda?
-
Muito. Teu avô levou todos os homens daqui da fazenda para lutar na guerra.
Ficamos nós, as mulheres, a trabalhar para manter a fazenda, cuidando do gado e
fazendo as lides campeiras. Todo domingo, Pe. Guilhermino vinha rezar uma missa
aqui na fazenda, e nós reiterávamos nossos pedidos.
-
E como foi quando papai nasceu?
-
A preocupação só aumentava, já que não sabia por onde meu marido andava, mas tive
esperanças ao receber uma carta dele que contava que “o Rio Grande agora é
uma república! Antônio Netto a proclamou, faceiro com a vitória no Seival em
setembro. Agora estou em Piratini, capital da nova república. Nossa nova nação
já tem hino e bandeira, e agora digladiamos ideais de liberdade em uma guerra
entre países.” Paulo mandou-me ainda a letra do hino, contou que descobriu
a Maçonaria e lá aprendeu a valorizar a liberdade, igualdade e fraternidade,
estampados em nossa nova bandeira.
-
Continue, estou adorando essa história! Quero ser como ele quando crescer...
-
Teu avô ficou muito amigo também de um italiano, o Giuseppe, construtor de
navios. Ele fazia os navios e teu avô, por vezes, ia junto com o italiano
atacar os navios do Império.
-
E esse jornal aqui?
-
Você tirou o jornal da minha gaveta, que modos são estes?
-
Ah, vó! Que mal há nisso?
-
Vou deixar que teu pai tome as providências. Sem mais delongas, esse jornal é
um dos que comprei a fim de saber das notícias da guerra. O Povo fez com
que pelo menos eu soubesse notícias do que meu marido estava metido, afinal.
-
Ahnn... Então os guerreiros tinham um jornal?
-
Claro, pois toda revolta tem um instrumento de divulgação. Como podes ver, o
jornal diz que os revolucionários queriam maior autonomia das províncias, um
presidente eleito pelos gaúchos, além de baixar os impostos do charque. Como os
imperiais não quiseram aceitar, acabamos criando uma república.
-
E essa bandeira aí na parede, já existia?
-
Foi criada junto com o hino, que te falei antes. A original, conforme a carta,
dizia que a bandeira da República Rio-Grandense era um quadrado, cortado por um
hexágono vermelho e dois triângulos, um verde e outro amarelo.
-
Não havia o brasão?
-
Não, ainda não. Foi criado com bastante influência da maçonaria. E o hino foi
criado por um “estrangeiro”, o mineiro Medanha, como me disse o teu avô
naquela mesma carta.
-
Vó Luísa, como vocês passaram os primeiros tempos de casados, antes da
revolução?
-
Vivemos muito bem. No dia da festa, casamo-nos na igreja da vila, afinal todos
éramos católicos, a religião oficial do Rio Grande. Meu pai e meu marido, assim
como a maioria dos homens, não tiravam tempo para ir rezar na Igreja e ter com
Deus. Nós mulheres, íamos mais vezes à Igreja, antes da revolução, quando
ficamos presas em nossas fazendas, afinal todas as tarefas que já eram nossas
foram somadas aos afazeres de nossos maridos. Voltando ao assunto; nos domingos
nós costumávamos chamar o capataz, que sabia tocar gaita muito bem e os seus
filhos, que tocavam violão e pandeiro. O Fandango era certo. Chula, tava,
truco, jogo do osso, tiro de laço na cancha da fazenda... Esse dia era
reservado à nossa diversão, pois em todos os dias não tínhamos descanso.
-
Então continue a me contar sobre a guerra.
-
Em março de 1940, a capital passou para Caçapava do Sul, de onde teu avô mandou
uma nova carta. Estava muito ocupado com a proclamação da República Juliana.
-
Onde era essa República Juliana?
-
Nosso estado vizinho, Santa Catarina. Um dia desses vamos conhecê-lo.
-Que
vovô dizia nesta segunda carta?
-Ele
estava dizendo que ajudaria na Assembleia Provincial constituinte para a
elaboração de uma nova constituição. Na carta seguinte, já em Alegrete, ele diz
que a nova constituição é uma mistura de revolução francesa e independência
americana. A última carta que ele me mandou foi após a guerra. Para meu marido,
Paulo, “Ou o império lhes oferecia paz honrosa; ou a guerra só terminaria
quando nos campos da terra gaúcha corresse o sangue do ultimo farrapo”. Fiquei
impressionada com as palavras dele, e não acreditei que a guerra realmente tivesse
terminado, pois após quase dez anos lutando em uma guerra, ainda dizia aquelas
coisas. Contou que o amigo David voltaria à sua estância, que o General Netto
não gostou do acordo e oferecia suas terras na então província, novamente.
Bento Gonçalves, outro amigo do Paulo, voltou para o Rio Grande, mas fiquei
sabendo que morreu dois anos depois do Acordo de Paz de Ponche Verde.
-
E vovô voltou para casa?
-
Não voltou. Depois de ter lutado todo este tempo e sobrevivido, morreu na
volta, até hoje não sabemos se morreu de pneumonia, segundo me contaram, pois
tinha uns problemas no pulmão, mas não queria cuidar da saúde. O resto da
história você já conhece.
-
Que pena que meu pai não conheceu o pai dele. Esta noite vou rezar e agradecer
por ter o meu junto de mim.
-Agradeça
mesmo.
Sem
perceber, os dois adentraram a noite. O ar já está levemente frio e os dois dirigem-se
para dentro do casarão, continuar suas histórias. ”
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